O Governo apresentou na Assembleia da República uma proposta de lei que integra um conjunto alargado de medidas fiscais com o objetivo declarado de responder à crise na habitação, estimulando simultaneamente a oferta e o acesso a casas para venda e arrendamento a valores considerados moderados. O chamado “choque fiscal” incide sobre vários impostos — IVA, IRS, IRC, IMT e IMI — e abrange famílias, empresas e investidores institucionais.
A iniciativa surge num contexto de forte pressão sobre o mercado habitacional, marcado por escassez de oferta, subida continuada dos preços e rendas, e dificuldades crescentes das classes médias em aceder a habitação própria ou arrendada. O Executivo sustenta que a via fiscal pode funcionar como catalisador para desbloquear investimento e acelerar a construção e reabilitação de imóveis.
Redução do IVA na construção: incentivo com limites claros
Uma das medidas centrais é a aplicação da taxa reduzida de IVA (6%) às empreitadas de construção e reabilitação de imóveis destinados a habitação, desde que o preço de venda não ultrapasse os 648 mil euros ou, no caso do arrendamento, que a renda mensal não exceda os 2.300 euros. A taxa reduzida aplica-se apenas a projetos iniciados após 25 de setembro de 2025, produzindo efeitos em faturas emitidas a partir de 1 de janeiro de 2026.
No caso de edifícios de uso misto — habitacional e não habitacional — a taxa reduzida incide apenas sobre a parte da empreitada correspondente às frações habitacionais que cumpram os critérios definidos, sendo aplicada de forma proporcional à área afeta à habitação. Esta limitação, embora tecnicamente coerente, reduz o alcance da medida em operações urbanísticas mais complexas, comuns nos centros urbanos.
A proposta contempla ainda a autoconstrução, permitindo às famílias que construam a sua própria habitação solicitar a restituição da diferença entre a taxa normal de IVA e a taxa reduzida, através de um mecanismo de reembolso. Apesar de positiva, esta solução depende de procedimentos administrativos que poderão introduzir atrasos e incerteza no benefício efetivo.
Arrendamento: incentivos fiscais mais agressivos
No domínio do arrendamento, o Governo propõe uma redução significativa da tributação autónoma em IRS aplicada às rendas de valores moderados, que passa de 25% para 10%, entre 2026 e 2029. Nos contratos enquadrados no Regime Simplificado de Arrendamento Acessível, onde as rendas são inferiores a 80% da mediana do concelho, os rendimentos ficam totalmente isentos de IRS.
É ainda prevista a isenção de IRS sobre mais-valias imobiliárias quando o valor da venda seja reinvestido em imóveis destinados a arrendamento habitacional a preços moderados, procurando direcionar capital para o mercado de arrendamento e não apenas para a venda.
Do lado dos inquilinos, o limite da dedução à coleta do IRS com rendas sobe para 900 euros em 2026 e para 1.000 euros a partir de 2027, uma atualização relevante, embora ainda distante do esforço financeiro real suportado por muitas famílias em zonas de maior pressão urbana.
Contratos de investimento e benefícios para empresas e fundos
A proposta cria ainda os Contratos de Investimento para Arrendamento Habitacional (CIA), com duração até 25 anos, exigindo que pelo menos 70% da área construída seja destinada a rendas moderadas. Estes contratos oferecem um pacote robusto de benefícios fiscais, incluindo isenção de IMT e Imposto do Selo na aquisição de terrenos e imóveis, isenção de IMI até oito anos, redução posterior da taxa, isenção do Adicional ao IMI, IVA reduzido nas empreitadas e restituição parcial do IVA em serviços técnicos como arquitetura e projetos.
As empresas beneficiam ainda de um regime favorável em IRC, com apenas 50% dos rendimentos prediais sujeitos a tributação quando as rendas não ultrapassem os 2.300 euros, sendo prevista isenção total nos contratos abrangidos pelo arrendamento acessível. No caso dos fundos de investimento, a proposta limita a tributação a 5% dos rendimentos distribuídos, desde que uma parte dos ativos esteja afeta a arrendamento acessível.
Análise crítica: estímulo suficiente ou risco de efeito limitado?
Embora o pacote apresente uma arquitetura fiscal abrangente e coerente, subsistem dúvidas quanto à sua eficácia prática. A redução de impostos pode incentivar investimento, mas não resolve, por si só, constrangimentos estruturais como a lentidão dos licenciamentos, a escassez de mão de obra no setor da construção ou o custo crescente dos materiais.
Além disso, os limites máximos definidos para preços de venda e rendas, apesar de elevados em termos nacionais, podem continuar desajustados em áreas metropolitanas, onde os valores de mercado superam largamente esses tetos. Há ainda o risco de parte dos benefícios ser absorvida pelos promotores e investidores, sem reflexo proporcional na redução efetiva dos preços finais para as famílias.
O Governo aposta claramente numa estratégia de estímulo ao mercado através da fiscalidade, complementando medidas já existentes, como os apoios aos jovens na compra da primeira habitação e a mobilização de património público. Resta saber se este conjunto de incentivos será suficiente para alterar de forma estrutural um mercado profundamente tensionado ou se funcionará apenas como um alívio parcial, com impacto desigual no território.
A proposta segue agora para debate parlamentar, onde deverá ser escrutinada quanto ao seu equilíbrio entre incentivo económico, justiça fiscal e eficácia social — três dimensões centrais num dos dossiers mais sensíveis da atualidade política e económica.